domingo, 23 de março de 2008

Carcará

Chuva divina, a molhar o cerrado
Plantação suada no orvalho da noite
Tempestade que varre o deserto do sertão
Carcará que sobrevive da devassidão.

Granizo rasgando o asfalto
Quebrando as vidraças
Cortando as folhas do bananal.
Sem água para fazer crescer
O que jaz um dia fora um canavial
Com folhas cortando a epiderme da carne
Hoje de nada resta, na terra insossa.
As chaminés enfeitam a paisagem
O moinho transforma-se num pombal.
E a terra, seguimentada, fatiada, seca.
Implora a água bandida do granizo brutal.
Sertão desumano, onde mora gente simples
De pés descalços, e mãos grossas,
Marcadas como a terra que os abriga.
Carcará que sobrevoa a carniça.
Espreita na escuridão, o breu da devassidão.

Chuva que molha o sertão
De nada resta, do lodo que seca no poço.
E mancha o verde cinza, do chão árido
No sertão da nossa terra.

Granizo gelado, no sertão asfaltado
Sem terras para molhar, apenas cimento para lavar.
Inundando ruas e travessas, alagando túneis e passarelas
Enchente que devassa, chuva que afoga
Dor que consome, ao ver o corpo boiando
Ou o carro flutuando, na correnteza da água
Que sem ter pra onde escoar
Inunda, e transforma a cidade
Numa tsuname, de água e vento.
Desmoronando barrancos
Desabrigando famílias, matando gente.
A mesma água que falta é a que consome
A mesma água que mata é a que dá vida.
Carcará sobrevoa a carniça
Do cimento asfáltico, ou terra seca, grossa e morta.

Ricardo Muzafir

Nenhum comentário: